A Dívida Pública: Entre o Mito e a Matemática
- Ricardo São Pedro

- 19 de nov.
- 8 min de leitura
A dívida pública do Brasil está em 78% do PIB. Descubra se isso é realmente perigoso, como funciona a matemática da dívida e o que esperar nos próximos anos.

Publicado em 19/11/2025 / 22:00
Por Ricardo São Pedro (@radiumweb), com revisão técnica de Marcelo Ferreira (@marceloaf1978)
Nos últimos anos, a dívida pública voltou ao centro das discussões econômicas brasileiras, sempre acompanhada de manchetes alarmistas e discursos inflamados. E esse já é o terceiro artigo que escrevo sobre ela aqui no blog. Para alguns, ela é o vilão de todos os males fiscais; para outros, um simples instrumento de política econômica. A verdade, como quase sempre, está nos números, e nas particularidades do caso brasileiro.
Recentemente, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo publicou no Valor Econômico o artigo "A Fábula da Dívida Pública", em que questiona a visão de que o endividamento do Estado seria um risco existencial para o país. A provocação é válida, especialmente quando a opinião pública se deixa guiar por slogans fáceis e pouco entendimento sobre o funcionamento da economia real, mas o debate merece ir além das simplificações, de ambos os lados.
Dívida pública não é calote à vista (mas também não é carta branca)
A primeira ideia que Belluzzo reforça — e que os fatos confirmam — é que ter dívida pública não significa estar quebrado. O Brasil, como outros países com soberania monetária, emite títulos na sua própria moeda. Isso muda a equação, pois o risco de default técnico é muito menor do que aquele enfrentado por nações que tomam empréstimos em moeda estrangeira.
Quando o governo se endivida em reais, ele pode rolar a dívida, refinanciá-la e administrar o estoque conforme sua política fiscal e monetária. Essa capacidade é real e importante.
Mas a soberania monetária não é um escudo absoluto. Uma parcela significativa dos detentores de títulos públicos brasileiros são investidores estrangeiros. Se houver perda de confiança ou fuga de capitais, o país pode enfrentar desvalorização cambial severa, inflação importada e pressão sobre o Banco Central para elevar ainda mais os juros. A Argentina, que também emite dívida em sua própria moeda, entrou em colapso fiscal múltiplas vezes. A diferença entre Brasil e Argentina não está apenas na moeda, mas na credibilidade das instituições e na qualidade da gestão fiscal.
Portanto, o verdadeiro problema não é apenas o tamanho da dívida, mas as condições sob as quais ela cresce — e a confiança que o país inspira em seus credores.
O que importa é a relação entre juros e crescimento
Aqui entra a matemática da economia, simples, mas poderosa.
O comportamento da dívida pública ao longo do tempo depende da relação entre duas variáveis:
r = taxa de juros reais paga sobre a dívida
g = taxa de crescimento real da economia
A dinâmica da dívida pode ser expressa assim:
Variação (Dívida/PIB) = (r - g) × (Dívida/PIB) - Superávit Primário/PIB
Quando r < g, ou seja, quando o país cresce mais rápido do que os juros que paga, a dívida tende a cair como proporção do PIB, mesmo que o governo mantenha déficits primários moderados. É o que aconteceu em diversos países desenvolvidos no pós-guerra.
Mas quando r > g, o peso da dívida aumenta, e o Estado precisa buscar superávits primários crescentes para evitar que a dívida dispare. Esse raciocínio é aritmético. É o mesmo usado por países desenvolvidos, bancos centrais e instituições multilaterais.
A dívida também tem função positiva
Pouca gente se dá conta, mas a dívida pública é a base de segurança do sistema financeiro. Os títulos do Tesouro são usados como colateral em empréstimos, formam o lastro dos fundos de pensão, dão liquidez ao mercado bancário e servem como instrumento de política monetária.
Sem títulos públicos, o sistema financeiro perde seu principal "ativo livre de risco". Por isso, eliminar completamente a dívida ou tratá-la como um mal absoluto não faz sentido econômico. O que o país precisa é de gestão eficiente, previsibilidade e composição adequada da dívida — não de pânico fiscal nem de complacência.
O caso brasileiro: três problemas estruturais
O Brasil não é o Japão, nem os Estados Unidos. Tem características que tornam sua dívida mais problemática, mesmo com um estoque que oscila entre 75-80% do PIB pelos critérios do Banco Central — inferior ao de muitas economias desenvolvidas.
1. Juros reais estratosféricos
O Brasil mantém uma das maiores taxas de juros reais do mundo. Isso significa que, há anos, vivemos com r > g, o que pressiona o orçamento e restringe investimentos em áreas estratégicas como infraestrutura, educação e saúde. Enquanto o custo do dinheiro for maior do que a capacidade de gerar riqueza, qualquer discurso sobre austeridade será apenas paliativo.
Para efeito de comparação: o Japão tem dívida superior a 250% do PIB, mas paga juros próximos de zero. Os Estados Unidos têm dívida acima de 120% do PIB, mas crescem de forma robusta e contam com o dólar como moeda de reserva global. O problema brasileiro não é apenas o tamanho da dívida, mas o contexto macroeconômico em que ela opera.
2. Composição da dívida: o calcanhar de Aquiles brasileiro
A dívida brasileira tem peculiaridades que agravam o problema:
Cerca de 40% é indexada à Selic (pós-fixada): quando o Banco Central sobe os juros para controlar a inflação, o próprio governo federal paga mais juros. É um círculo vicioso.
Prazo médio relativamente curto (em torno de 4 anos): isso exige rolagens frequentes, aumentando a vulnerabilidade a choques de confiança.
Alta sensibilidade a expectativas: qualquer sinal de descontrole fiscal eleva os prêmios de risco, encarecendo a dívida.
Esse desenho institucional cria um trilema perverso: o Banco Central precisa de juros altos para controlar a inflação, mas juros altos aumentam o custo da dívida pública, que pressiona o fiscal, que gera mais incerteza, que exige juros ainda mais altos. Romper esse ciclo é um dos grandes desafios do país.
3. Dívida para custeio, não para investimento
Talvez o ponto mais grave: o Brasil investe pouco (cerca de 2% do PIB em investimento público) e gasta muito em custeio e transferências correntes. A dívida cresce financiando consumo presente, não capacidade produtiva futura.
Quando a dívida financia investimento produtivo, infraestrutura e inovação, ela cria o crescimento que, por sua vez, reduz seu próprio peso. Mas quando sustenta gastos correntes ineficientes e juros abusivos, torna-se armadilha. No Brasil, predomina o segundo caso.
O papel das expectativas e da credibilidade fiscal
Um aspecto frequentemente negligenciado: a percepção do mercado importa tanto quanto os números.
Se investidores duvidarem da capacidade do governo de honrar compromissos ou controlar gastos, passam a exigir prêmios de risco maiores. A dívida fica mais cara. Forma-se uma profecia autorrealizável.
Parte dos juros reais elevados no Brasil decorre da falta de credibilidade fiscal: arcabouço orçamentário frágil, gastos obrigatórios crescentes, pressões políticas por mais despesas, histórico de descumprimento de metas. Resolver a questão da dívida passa também por reconstruir a confiança nas instituições — e isso demanda reformas estruturais, não apenas ajustes pontuais.
Riscos genuínos que não podem ser ignorados
Minimizar os perigos da dívida elevada seria tão equivocado quanto alarmismo infundado. Existem riscos reais:
Dominância fiscal: quando a dívida fica tão alta que o Banco Central perde autonomia para conduzir a política monetária, subordinando-se às necessidades do Tesouro.
Crowding out: dívida alta sustenta juros altos, reduzindo o crédito disponível para o setor privado e freando investimentos produtivos.
Sudden stop: em cenário de crise, pode haver fuga abrupta de capitais, forçando ajustes recessivos e desvalorização cambial intensa.
Inflação como válvula de escape: governos tentados a "corroer" a dívida via inflação acabam destruindo poupança, planejamento e crescimento de longo prazo.
Esses riscos não são ficção. São possibilidades concretas que diversos países já experimentaram.
A questão dos limites: existe um patamar seguro?
Uma pergunta relevante: qual seria um nível seguro de endividamento para o Brasil nos próximos anos?
A literatura econômica internacional sugere parâmetros. O Tribunal de Contas da União, utilizando a metodologia DSA-MAC (Debt Sustainability Analysis) do FMI e Banco Mundial, indica que para países emergentes, uma relação dívida/PIB superior a 70% já sinaliza alto risco para a sustentabilidade. Um estudo do Banco Mundial identificou que países cuja dívida excede 64% do PIB por períodos prolongados experimentam desacelerações significativas no crescimento: cada ponto percentual acima desse limite reduz o crescimento em 0,02 pontos percentuais ao ano.
O Brasil, segundo dados do Banco Central, encerrou 2023 com dívida bruta de 74,4% do PIB e chegou a 78,5% em agosto de 2024. As projeções para os próximos anos são preocupantes:
Cenário atual (2024-2030):
A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado projeta que a dívida alcançará 80% do PIB em 2024, 81,4% em 2025 e 86,3% em 2026.
O FMI, que usa critérios diferentes (incluindo títulos retidos pelo Banco Central), estima trajetória ainda mais severa: 87,6% em 2024, 92% em 2025 e 97,6% em 2029.
Sem mudanças estruturais, a IFI projeta que a dívida ultrapassaria 100% do PIB em 2030 e chegaria a 116,3% em 2034.
O que seria necessário para estabilizar: Segundo a IFI, estabilizar a dívida exigiria um superávit primário consistente de 2,4% do PIB ao ano — um número considerado pouco viável no cenário político e econômico atual. Para 2024, o déficit primário ficou em torno de 0,1% a 0,5% do PIB, dependendo da fonte, muito longe do necessário para reverter a trajetória.
Contexto comparativo: Entre 38 países emergentes analisados pelo FMI, o Brasil ocupa o sexto lugar em endividamento, atrás apenas de Bahrein (126,7%), Ucrânia (95,6%), Argentina (91,5%), Egito (90,9%) e China (90,1%). A média dos emergentes está em torno de 68-73% do PIB.
Conclusão sobre limites: Considerando os parâmetros técnicos e a realidade brasileira, um patamar seguro e sustentável para o Brasil estaria entre 65-75% do PIB. Acima disso, especialmente ultrapassando 80%, o país entra em zona de vulnerabilidade crescente, onde:
Os juros tendem a subir ainda mais
A capacidade de investimento público se deteriora
O risco de dominância fiscal aumenta
A margem para enfrentar crises externas diminui drasticamente
A trajetória atual aponta para além desses limites seguros nos próximos 2-4 anos, tornando urgente a adoção de medidas que combinem controle de gastos, aumento da produtividade e redução estrutural dos juros reais.
Entre o mito e a realidade
Chamar a dívida pública de "bomba-relógio" é um erro analítico. Ignorar seus riscos estruturais também é. A sabedoria está no diagnóstico preciso: o endividamento público é uma ferramenta de política econômica, nem sentença de insolvência, nem cheque em branco.
Como todo instrumento, pode ser usado bem ou mal. O desafio brasileiro não está na existência da dívida, mas em três frentes simultâneas:
Reduzir estruturalmente os juros reais — o que exige credibilidade, reformas e ambiente macroeconômico estável.
Aumentar o crescimento potencial da economia — via investimentos em infraestrutura, educação, inovação e melhoria do ambiente de negócios.
Recompor a dívida — alongando prazos, reduzindo indexação à Selic e melhorando a previsibilidade fiscal.
O que os números pedem de nós
O debate sobre a dívida pública precisa sair do terreno do medo e da complacência para entrar no campo da razão e do pragmatismo.
Os dados mostram que o Brasil está se aproximando rapidamente de patamares onde a dívida deixa de ser ferramenta e passa a ser restrição. Enquanto insistirmos em ver o endividamento como problema secundário ou, no extremo oposto, como ameaça apocalíptica, continuaremos refém de juros altos, credibilidade frágil e crescimento medíocre.
Mas se aprendermos a lidar com ele de forma racional — com transparência, foco em produtividade, responsabilidade fiscal e reformas estruturais — a dívida deixa de ser ameaça e passa a ser instrumento de desenvolvimento.
A fábula da dívida pública não assusta quem entende os números. Mas tampouco tranquiliza quem ignora o contexto. O equilíbrio entre matemática e realidade institucional é o caminho para uma economia mais saudável e próspera.
Ricardo São Pedro é engenheiro civil com MBA em Planejamento Financeiro Pessoal e Familiar. Atua como educador e planejador financeiro, promovendo a educação financeira como instrumento de cidadania e transformação social. Idealizador da web rádio Radium, produz e apresenta programas que integram finanças, bem-estar e temas relevantes para a vida dos brasileiros. Também assina artigos no blog da rádio e participa de projetos voltados à inclusão e à segurança financeira das famílias.










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